domingo, 2 de novembro de 2014

Sobre o tempo ou Eles já nascem sábios.

Filhos chegam na vida da gente por um motivo. Sempre. A chegada de Helena foi uma surpresa. Mas ela tinha que vir, pra me ensinar que mudança de verdade é de dentro. Vem de lá do fundo. Me ensinou no parto. Me ensinou ontem. Vai ensinar ainda mais.
Ontem eu iria receber visitas, e como apaixonada por cozinha que sou quis aproveitar o ensejo para testar uma receita para um novo projeto. Saí pela manhã e cheguei a tarde com várias receitas pra fazer. Me pus na cozinha, ignorando que tenho uma filhota de três meses. E volta e meia ela chorava. Volta e meia eu parava tudo para colocá-la para dormir. Adormecida, colocava na cama ou entregava nos braços do pai. Mas ontem a minha pequena que sempre dorme no berço, na cama ou nos braços do pai, decidiu que só lhe serviam os meus braços. Assim passei a tarde revezando entre a cozinha e o colo. O saldo foi um naked cake duro, ressecado e sem gosto e uma menininha estressada, chorando e gritando porque não dormiu mais que trinta minutos seguidos.
Como já disse, filhos ensinam. Nascem sábios. Se permitirmos, eles transformam cada pedacinho de nós. Esta foi uma das piores semanas da minha vida. Começava o dia desejando desesperadamente voltar para a cama. Me arrependi de ter abdicado do salto alto, do trabalho, do tempo, do sono. Decidi que não queria mais. Que se encontrasse uma máquina do tempo avisaria à Elisama sem filhos, livre, leve e solta que filhos dão trabalho demais e que não vale a pena. Decidi que caí numa cilada e que, sem opção melhor, eu teria que seguir até o dia que finalmente me sentiria livre novamente. Não estou exagerando. Estou em casa, cuidando de criança faz dois anos. Quando a fusão emocional com o primeiro estava acabando, vem a vida e me empurra num novo puerpério. E prolonga em alguns anos a mudança que tinha prazo contado. A verdade é que não queria me entregar mais. Queria voltar a viver além da maternidade. 
Quem leu meu relato de parto sabe que Helena chegou me mostrando que existem mais tempos que os meus no tempo do mundo. Ontem, depois da tarde e noite de choro - meu e dela - aprendi que se estamos juntas nessa jornada, precisaremos harmonizar nossos tempos. Não importa se vivi os dois últimos anos dedicados a um filho. Ela chegou a três meses. E quer meu tempo. 
Desde que nasceu eu a vejo como um bebê de sonho, na maior parte do tempo. Passa horas entre uma mamada e outra, dorme a noite toda, mamando no máximo uma vez. Se deixa embalar e consolar pelo pai, facilmente. E eu não entendi que ela estava respeitando meu tempo, esperando apenas que eu também respeitasse o dela. No entanto o bebê calmo, tranquilo e de sonho, se transforma em um pesadelo quando chora.O choro gritado me desestabiliza. Me tira o chão. Quando ela chora, recusa o peito. Berra. Exige de mim algo que até ontem eu não sabia como dar. E foi no escuro do meu quarto, entre lágrimas e berros nossos que eu entendi. Entendi que ela precisa que eu me acalme para só depois acalentar. Percebi que dar o colo e o peito não é suficiente. Ela me vê por dentro. Eu, que nunca consegui meditar, nunca consegui um silêncio interior, me pus a desacelerar e esquecer. Esquecer a sala cheia, o filho mais velho, o bolo solado. Esquecer o horário. O tempo que vivi. Os planos e dias que viverei. Me pus a esvaziar a mente. Me pus a entender minhas reais prioridades.
Depois de um dia louco e alguns planos frustrados, percebi que é o momento que tenho que planejar menos. Ou melhor, não planejar nada. Agora, a mulher controladora e louca que sempre fui precisa aprender que o tempo é senhor dele mesmo, e não aceita controle. O novo projeto terá que esperar. Antigas parcerias também. Naquele quarto escuro percebi que não preciso pisar no freio pelos meus filhos. É por mim. É pela mãe de um menino de dois anos e pela puérpera. Pela mulher que fui. Pela mulher que serei. E pela primeira vez na vida dou tempo ao tempo. Ciente de ter me passado a lição que precisava, dormiu calmamente, a noite toda, o sono dos justos. Já falei e repito, eles nascem sábios.

domingo, 14 de setembro de 2014

Recomeços.

As gotas de leite pingando no chão me diziam que eu estava mais uma vez parida. Era a minha primeira semana sendo mãe de dois. Estava no banho, olhei para a barriga, então "vazia" e chorei. Não era um choro de tristeza, nem de felicidade. Era choro de puérpera. Choro de quem passou nove meses sendo dois, e tornava-se novamente uma. Recém-parida e recém nascida. Porque no parto também nasce uma mãe. Até então me conhecia como mãe de Miguel. No parto nasceu a mãe de Helena. Nasceu com dor, com lágrima, com descontrole. Nasceu como tinha de nascer. 
Nunca duvidei que amaria minha filha. Nunca achei que a amaria menos que a Miguel. Mas em momento nenhum tive noção do que amar a dois filhos significa. Amar aos dois é algo transcendental. Não dividi meu coração, ganhei outro. Vê-los juntos faz tudo ganhar sentido. Cada vez que a pequena ri para o irmão me faz conhecer um sentimento que só a mãe de dois pode ter. Mas nem tudo é lindo, é romântico, é ideal.
Nos primeiros dias com a pequena Miguel me rejeitou. Negou meu abraço. Não quis o meu colo. Conheci uma dor que nunca tinha sentido. Chorei imaginando que não daria conta, que ter dois filhos era uma loucura. O olhar de menino traído me atingia profundamente. Como eu pude fazer isso com ele? Como pude ceder seu colo para uma estranha assim? Depois de dois dias ele me permitiu um  abraço. Tímido, contido. Agarrei meu filho com força e chorei. Mais uma vez.  Porque puérpera, recém nascida que é, chora. Chorei dizendo que o amava e que o bebê que agora mamava nos seios que foram dele tinha vindo para a nossa casa para abençoar e multiplicar o que tínhamos. Falei para ele (e para mim) que não havia divisão. 
Hoje, quase dois meses depois de parida, aprendi que o segundo filho vem como precisamos que seja. Vem porque a família precisa de ainda mais amor. Vem porque tem muito a dar e ensinar. Vem para completar. Senti medo de não dormir nunca mais. Minha filha veio com um sono tão gostoso e tranquilo que dormir ao seu lado me faz dormir melhor que antes de sua chegada. Sua energia calma adoça o dia. O segundo puerpério é mais leve, menos tenso, menos assustado. Não tenho a vontade de ser a mãe perfeita. Não tenho medo de não saber o que fazer. Meu corpo já gestou e pariu dois. Já alimentou um. Sei que sou capaz. Gasto menos tempo lendo sobre maternidade. Passo mais tempo vivendo a maternidade. Duvido menos, acredito mais. Sei que bebês choram e que, por vezes, me resta abraçar, amar, consolar. Os momentos de colo são melhor aproveitados. No colo agora cabem dois. E no chuveiro somos três.
Como disse, nada é perfeito. Os dias seguem oscilando em dias muito fácies e realmente incríveis e dias de piração total.Por vezes são dois choros, ao mesmo tempo, e tenho que escolher a quem atender primeiro.São duas demandas diferentes. São dois seres diferentes me tornando alguém que ainda estou conhecendo. No puerpério conhecemos o bebê e nosso novo eu.
Pois agora sou mãe de dois. Tenho dois corações batendo forte no peito. E dois pedaços de mim no mundo. Tenho dois motivos para acordar. Dobrou o amor dentro de casa. Dobrou o choro. Dobrou o riso. O dobro de vontade de fugir. E de razões para ficar. Duas vezes mais beijo, mais dengo, mais carinho. Duas vezes mais cheiro de vida. Mais vida. Dois Sóis iluminando e aquecendo a fria solidão do pós parto. Cá estou, com um recomeço nos braços e entendendo que a vida tem suas próprias razões.  


domingo, 27 de julho de 2014

Relato de parto - Nascimento de Helena

Há uma semana Helena vinha. Aos poucos, no tempo dela, pra me ensinar que cada vida tem seu tempo e que nada está sob meu controle. Foi no domingo que tudo começou. Foi na noite de domingo que nossa jornada se iniciou, hora juntas, hora separadas. Ela para fora e eu pra dentro de mim. Mas não dá pra começar este relato pelo final, então vamos pro começo.
Quem acompanha o blog - se é que há algo para acompanhar, visto que tenho escrito tão pouco - sabe que não planejei esta gravidez. Helena veio porque queria vir, porque precisava nascer de mim. E eu dela. Durante a gravidez esquecia que estava gravida, absolutamente voltada aos cuidados com Miguel, hoje com 23 meses. Só não esquecia do parto. Porque ativista é assim, adora parto, adora parir, adora planejar o implanejável. Eis que planejei cada detalhe. Como não sabia onde estaria morando no final da gravidez - longa história, fica pra outro dia - decidi parir em Salvador, na casa da minha  doula-amiga-sócia. Contratei fotografa amiga e ativista. Convidei uma amiga, também ativista pra cuidar do meu pequeno e estar por perto também. Contratei a parteira mais tranquila e "hands off" que podia existir. Piscina, bola, banqueta. Era isso. O parto seria perfeito.
Para falar do meu segundo parto, não posso deixar de falar do primeiro. Do meu renascimento, da minha passagem para um mundo novo. A mulher que gestou Miguel não era uma ativista do que quer que fosse. Entendia o básico de parto. Bancou uma parteira que veio de São Paulo enquanto estava em trabalho de parto. Queria apenas parir, não importava mais nada. E conseguiu. Mas a mulher que gestou Helena queria o parto perfeito. Queria ser amiga da dor. Queria mais que parir. Queria o parto que seguisse o script. 
Como disse, pari na casa de uma amiga. Com quase 38 semanas nos mudamos para casa de Lu sem prazo para voltar. Na sexta-feira as amigas organizaram um lindo chá de bençãos. Muito amor, muita ocitocina e muita energia positiva. Helena viria num mundo de amor. Com a virada da lua o sábado foi de pródomos, contrações irregulares, moleza. E o domingo veio com leves cólicas. Cólicas que eu conhecia. Meu corpo me dizia que era o trabalho de parto vindo. Avisei a todas as envolvidas e ao marido: " Vou parir hoje ou amanhã, eu sei." E assim foi. No domingo a noite as contrações se ritmaram. As cólicas leves vinham com dor. Era o tão sonhado parto perfeito vindo. Arrumamos o quarto, escuro, iluminado com velas, bilhetinhos emanando boas energias "dazamiga parideira" nas paredes. Músicas cuidadosamente selecionadas. Piscina cheia, bola para apoiar. Aquela dorzinha do começo, que mostra que o corpo tá funcionando bem, que a hora está chegando. Chegaram a parteira e a fotografa. A minha irmã e a minha amiga. Estava tudo pronto, era só parir. 
As horas foram passando, a madrugada entrando. Pedi pra ficar só. Precisava me conectar comigo, com minha filha. Mas algo estava errado. Eu queria sentir novamente o que a mulher que pariu Miguel sentiu.Eu queria me entregar, ficar cega, surda. Queria me drogar de ocitocina. Mas não tem botão pra isso. Não dá pra desligar a racionalidade. Não dava pra deixar a ativista atras da porta. Eu não conseguia não pensar. Mas como era possível? Como que eu não conseguia sentir o trabalho de parto? Todas as vezes que ficava só, dormia. A racionalidade era tanta que eu sabia quando comer e o que comer. A clara sensação de que eu estava vendo tudo de fora não me abandonava. E isso me incomodava.
A cada ausculta viamos que apesar de tão desconectada com o parto, Helena fazia a parte dela. Estava descendo no seu ritmo, seguindo lindamente sua jornada. Se em minha cabeça o parto não estava acontecendo, no meu corpo a vida seguia seu rumo, como tinha de ser. Eis que amanheceu. O raiar da segunda me trouxe uma enorme sensação de fracasso. E me pus a chorar. Chorei como criança que vê seu castelo de areia, tão cuidadosamente arquitetado, desmoronar na força da maré. Chamei de cansaço, mas aquele era um choro de frustração. Chorei falando que não aguentava mais a dor, porque não aguentava mais tanta coisa fervilhando na cabeça, chorei porque não conseguia saber o que fazer. Eu, que utilizo o toque no colo do útero como método contraceptivo não conseguia me tocar! Estava tão desconectada que me tocava errado! Eu, que contratei a parteira falando que não queria que ela encostasse em mim, perguntava o que fazer! Não conseguia ouvir meu corpo, saber em que posição ficar, não conseguia sentir nada além da dor. Era muita frustração para um parto só. Nada estava como planejado, nada estava certo.
Miguel acordou, me viu, me deu beijo. Marido deitou um pouco comigo, me abraçou. Em todo o trabalho de parto, este momento me marcou muito. Eram os meus amores. Eles estavam ali, sem expectativas, pouco se importando se o parto seria rápido e lindo ou não. Eles tinham amor puro e calmo. Importava apenas que eu estivesse bem. Amor renova.
Depois de tanta frustração,resolvi mandar o parto perfeito pra longe. Vocalizar uma ova, eu queria mandar pro inferno. Aquela porra de dor não era minha amiga. Gritei, xinguei. Soltei um caralho que vinha da alma. Fui pro chuveiro e surtei. Surtei, bicho ferido. E pela primeira vez em todo o trabalho de parto eu estava inconsciente. De dor, de frustração, de raiva. Gritava feito louca. Me permiti odiar a parteira, as amigas, todas as ativistas do mundo, toda a ciência do parto. Espumei de raiva. Bradei. E ali, naquele ataque de ódio o restinho do colo saiu. Ali Helena desceu e ali eu quase pari. Mas a maldita ativista cabeçuda voltou com a baboseira de amiga da dor. Contive o animal ferido e voltei pra piscina, numa vibe: " dor, eu te aceito e blá, blá. blá." Me toquei. A bolsa não estourava e tinha formado uma bossa. Sentia a "bolha" ali, na saída, feito rolha, tapando o canal. Agora esperar a contração vir forte o suficiente para estourar a bolsa. Da forma que ela estava dificilmente viria empelicada. Eu estava exausta. Exaurida. Tanila, a parteira, viu o quanto eu estava fraca e sugeriu um pouco de soro glicosado. E colocamos soro em minha veia. Desanimada, abatida, cansada e novamente consciente pedi que ela rompesse a minha bolsa. Recebi de pronto uma negativa firme. "Não". Depois de reanimada pelo soro, conversamos novamente. Eu não tinha mais forças. Eu precisava continuar, mas não aguentava mais toda aquela dor. Não dava para esperar aquela bexiga na saída do meu canal estourar sozinha para só depois parir. Eu precisava de ajuda. Frustrada e ferida solicitei uma intervenção. Eu, que tinha planejado o parto mais "hands off" possível. Eu que tinha planejado tanto. Também muito frustrada ela aceitou: " Vou ter que fazer um toque - algo que eu não queria nenhum, de forma alguma - e preciso fazer isso durante a contração. Vamos andar, vamos mudar a posição, ela vai estourar sozinha.". "Não, Tanila, eu quero agora.". Nós duas, cada uma frustrada a sua maneira, aceitamos aquela intervenção. E muito rapidamente a bolsa rompeu. Ali, naquele momento eu entendi tudo. Ali, depois da ultima gota d'agua para o desmoronamento do meu parto perfeito, ali, depois de uma intervenção eu entendi. Em tantas horas eu estava parindo um parto, não minha filha. O parto é meio, não fim. O ativismo te enche de expectativas e te faz esquecer que o parto é uma via de nascimento. Eu estava ali para parir a minha filha! Assim que a bolsa rompeu eu senti a cabeça de minha filha descer, com uma contração. Assim que a contração foi embora, levantei, ainda com soro, mas com as energias revigoradas. Levantei pedindo a banqueta. 
Eu ia colocar Helena no mundo na próxima contração. Ela ia nascer. E a banqueta chegou junto com a contração. Sentei torta, cega, surda, louca. Sentei fazendo força e já com a cabeça da pequena saindo. E em mais uma contração ela estava em meus braços. Grande, gorda, cabeluda. Linda. Olhei pra ela e entendi que tudo aquilo foi pra que eu entendesse que era ela o motivo de estar ali. Foi assim, quando realmente resolvi parir, a parteira estava no banheiro lavando a mão e teve de vir correndo, a fotografa longe e quase perde o grande momento. De supetão, de surpresa. Ela queria nascer. Ela só queria que eu também desejasse seu nascimento. Ela querendo vir ao mundo e eu querendo o parto lindo e perfeito.
A placenta caiu no chão menos de cinco minutos depois. Um ploft que também me aliviou. Pedi que a pegassem. Beijei e agradeci. Agradeci àquela que cuidou da minha pequena dentro de mim. Agora era comigo. Marido e Miguel chegaram, recebi beijo, abraço e vi que agora éramos quatro. 
Ah, filha, obrigada. 
Obrigada por me ensinar que parir é perder o controle. 
Obrigada por vir no seu tempo, pra me mostrar que existem mais tempos que os meus no tempo do mundo. 
Obrigada por ter feito sua jornada enquanto eu me perdia nos devaneios e planos de mulher controladora.
 Obrigada por vir de mim. Tinha de ser assim. Tinha de ser eu, tinha de ser você.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um adolescente de quase dois anos.

Certa feita li que o terrible two era a adolescência da infância. Para quem nunca ouviu falar nesta expressão, ela traduz algo que acontece por volta dos dois anos - as vezes antes, as vezes depois - , em decorrência do desenvolvimento emocional da criança. Sim, a deliciosa fase de enormes descobertas traz consigo efeitos colaterais. Tenho lido bastante a respeito, mas, como em diversas leituras, tenho aprendido racionalmente, mas não sentido, assim, na pele. Hoje entendi a comparação com a adolescência, e achei a descrição perfeita. 
Lembro bem de alguns sentimentos da minha adolescência. A vontade de sair e viver como um adulto vinha acompanhada da impossibilidade de me sustentar, emocional e financeiramente. Já não era uma criança, mas também não era um adulto. Estava ali, naquela zona cinza e indefinida, inadequada tanto em um quanto em outro meio. Pois bem, meu menino de quase 21 meses já não se sente um bebê. Quer vestir a roupa sozinho, calçar os próprios sapatos e andar solto por aí. Descobriu que o mundo é grande e que ele quer mais. Mas esse mundão enorme não atende as suas necessidades, não abarca as expectativas de um serzinho de menos de um metro. Inevitável a crise existencial.
Os últimos dias tem sido fofos e muito, muito difíceis. Tudo assim, junto e misturado. O guri partiu de um vocabulário de no máximo 20 palavras para falar com perfeição palavras com mais de três sílabas. Resolveu começar a fazer cocô no peniquinho. Tem interagido de uma maneira impressionante - pelo menos para mim, mãe babona assumida. Mas ao tempo que estas deliciosas mudanças vieram, veio também um desejo irrefreável de autonomia e independência. Para tudo responde um NÃAAAAO, sonoro e explicadinho, para deixar bem claro que ele tem vontade sim, e que quer que esta vontade seja respeitada. E respeitar esta vontade não é fácil não! Confesso que o terrible two tem me forçado a ir além de mim. A estudar e me superar. A contar até 350, a sair de perto, a respirar muito, muito fundo. Passo o dia negociando com o que é possível, conversando, oferecendo opções e, entoando um mantra quando a vontade dele é algo impossível de ceder. 
Depois de uma manhã linda e tranquila, cheia de brincadeiras e calmaria, a tarde veio tempestuosa. A criança acordou do cochilo absolutamente diferente e, depois de enlouquecermos, ambos, trancados em um apartamento, decidi ir no mercado perto de casa, aproveitaríamos a caminhada para passear e abstrair. Chegamos ao mercado, comprei o que precisava , com o pequeno sentado no carrinho, feliz da vida, apontando as coisas e falando tudo que reconhecia. Na saída ele me pediu uma das sacolas, e, antes que eu pudesse deixá-la com o peso adequado já estava ele, com o saquinho na mão. Não era pesada, cerca de 600 gramas, mas, como a caminhada seria de mais ou menos dez minutos, resolvi avisar:
- Filho, se você sentir que está pesado, devolve a sacola que a mamãe leva, tá?
- tá.
Depois de pouco mais de 2 minutos, a criança arremessa o saco longe, visivelmente irritado. Peguei a sacolinha e perguntei se ele ainda queria levar. Com a resposta afirmativa, recoloquei a sacola em suas mãozinhas ansiosas e seguimos. Mais dois minutos e novamente a sacola é arremessada. Desta vez ele grita, chora, e senta no chão. 
E lá vou eu, muito a contragosto, confesso, com um barrigão de seis meses de gestação, duas sacolas de mercado na mão, agachar, no meio da calçada, para conversar com a cria. Foi aí que percebi que eu não tinha nada com aquela história, que aquela explosão emocional não era comigo. Meu filho chorava muito, um choro irritado e sofrido. Os olhinhos transpareciam uma enorme frustração. E tudo ficou muito claro. Ele só queria ser capaz de me ajudar, de levar a sacolinha, como todo mundo faz. Ele não queria muito.Só queria um pouco mais. Senti meu coração apertar, um nozinho na garganta. Na hora minha impaciência foi embora. Consegui ir além dos meus preconceitos e vi ali uma criatura muito decepcionada, se sentindo incapaz. O que eu podia fazer? Gritar? brigar? reprimir?  Eu jamais trataria mal um amigo que carregasse aquele olhar. 
- Filho, você quer carregar a sacolinha né? Eu sei! Tá pesada demais! Vamos fazer o seguinte, mamãe vai tirar algo de dentro e te devolve num peso melhor tá bom?
- Nãaaaaaaaaao!
- Miguel, eu sei que você está frustrado, que queria muito levar a sacola como tá, mas tá pesada filho. Você logo será capaz de carregar uma grandona como a da mamãe. Mas agora sua sacola tem que ser menor. Eu sei que você tá triste. Eu entendo. Mas vamos ver se você consegue levar agora, assim?
Dei um beijo na testa, diminui o peso da sacola e entreguei a ele. Entre soluços pegou na minha mão, enxugou as lágrimas e saímos. O semblante mudou e o choro deu lugar a um sorriso, deixando clara a satisfação do Eu consigo! 
Voltei pra casa pensando em como sou injusta, por diversas vezes. Como ignoro que o mundo não foi feito para ele. Nada é da sua altura, nada é do seu jeito, nada é adequado. Entendi um pouco do nervosismo e das explosões emocionais. Reconheci o meu papel. Não tenho que julgar, limitar, podar. O mundo já tem bastante limites. Meu papel é ajudá-lo a lidar com os limites que a vida lhe impõe. Ajudar a lidar com  a enorme dor que a frustração traz. Ajudá-lo a reconhecer suas próprias dores. Ajudar a entender o tempo e o momento. Agora, nessa adolescência infantil, ele precisa muito mais de compreensão e paciência que de acusações e repreensões. Não tem sido fácil, não será fácil. Mas ao encarar aquele olhar eu pude ver que pra ele tem sido muito mais difícil que pra mim. É em sua cabecinha de ser que chegou a pouco no mundo que a vida tem ganhado e perdido sentido. É ele quem tem experimentado sentimentos tão loucos e tão profundamente desconhecidos que o fazem entrar em curto circuito. 
Sem dúvidas, os terríveis e maravilhosos dois anos serão uma fase de enorme amadurecimento, de cada um de nós, como seres humanos e de todos nós, como família. Lá vamos nós para mais esta jornada.



segunda-feira, 24 de março de 2014

A Helena, com amor

Esta é uma carta a você, filha. Uma escrita que está dentro de mim desde que descobri esta gestação, desde que senti que aqui, em meu ventre, crescia você. Sim, filha, nós, mulheres, temos um sexto sentido, uma ligação especial com o mundo e com nosso corpo. E meu corpo me disse, em meio ao turbilhão que chegou com você, que em mim crescia uma força diferente, única e poderosa: uma fêmea.
Não vou te pedir perdão pelas lágrimas de tristeza que derramei - e que, por vezes, derramo.Elas foram sentidas, vividas e legítimas. Lavaram a alma e hoje, claramente, posso enxergar porque a vida me trouxe você.  Hoje, ao confirmar o que minha intuição me dizia, aceitei, de coração aberto, como até agora não o tinha feito. E te agradeço por ter escolhido nascer de mim. Te agradeço por me permitir viver o florescer de uma alma feminina, da forma que jamais vivi, livre.
Sim, filha, te ensinarei o feminismo. Mas não esse feminismo que nega a nossa natureza, as nossas diferenças, o nosso poder. Não, meu amor, não te ensinarei a negar a beleza de ter um útero, de gestar, de amamentar e de sangrar todos os meses. As torpezas do patriarcado não entrarão em nossa casa. Aqui amaremos sempre nossas curvas, nossos cheiros e nosso corpo. Não te falarei para fechar as pernas, sorrir contida ou se reprimir. Aprenderemos juntas que nada nos é proibido. O mundo é nosso. O sexo frágil não nos define. Não somos princesas. Não, você não é, e não será uma princesa. Você será o que quiser ser. Brincará de boneca, mas também de bola, de pipa e de carrinho. Vestirá rosa, mas também azul, verde, amarelo e todo o arco-íris que seu gosto e tom desejarem.
Por vezes, durante minha infância e adolescência, chorei envergonhada, desejando ser um menino. Ah, filha, te prometo lutar para que este fantasma jamais te ronde. Porque ser mulher é um presente. E sei que cada dia seu me fará enxergar o poder feminino como nunca vi. Te ensinarei a se amar. A entender que somos iguais aos homens em direitos, mas somos seres completamente diferentes.Temos com este universo uma ligação que os homens jamais terão. Geramos vida. Sentimos a vida. Cheiramos a vida. Intuímos, parimos, amamentamos. Nossos ciclos se conectam com a natureza. Nossas almas guardam segredos seculares. Somos impares, somos únicas. Somos fêmeas. Sem dúvida, guardamos em nós uma beleza sem tamanho.
Ah, a beleza. Quero te dizer que o mundo está louco. Que conceitos como beleza se misturaram com terríveis padrões distorcidos que nos aprisionam e oprimem. Mas acredito que posso te mostrar que independente do tamanho do seu nariz, do numero do seu jeans ou dos seus cabelos você será bela. Porque a mulher que ama o poder que carrega em si exala uma beleza indescritível. Ser mulher é belo, simples e complexo assim. Valorizaremos juntas cada detalhe dos nossos corpos imperfeitos e neles descobriremos a verdadeira perfeição. 
Te ensinarei, acima de tudo, a respeitar e ser respeitada. Exigir respeito, infelizmente, em nossa sociedade, ainda é necessário. Ainda vivemos em mundo no qual vítimas são culpabilizadas. Ainda somos diariamente bombardeadas por um sistema defasado e opressor. Mas nos protegeremos. E protegeremos a todas, porque unidas somos mais, podemos mais. 
Obrigada, minha cara, porque te libertando, libertarei a mim mesma. Aceito a responsabilidade de deixar para o mundo uma fêmea consciente de si e de seu poder. Aceito a nossa missão. E já te peço perdão. Perdão porque falharei inúmeras vezes. Mas posso te garantir que cada falha será movida por uma descomunal vontade de acertar, será regida por um amor sem limites.
E que você venha, Helena, resplandecente e luminosa, iluminando o mundo, como significa seu nome.
O mundo é bão, filha, o mundo é seu.


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A menininha invisível

Hoje presenciei uma cena que me incomodou. Daquelas que fazem a gente refletir sobre um bando de coisas. Como de costume, saí no fim de tarde para caminhar com Miguel. Moramos em apartamento e, por mais que eu brinque bastante com ele ao longo do dia, nada como andar na grama e correr atrás dos cachorros dos vizinhos. Em meio a nossas andanças me sentei e deixei que o pequeno explorasse o mundo ao redor. Enquanto ele andava, pegava flores, arrancava folhas e corria sem ao menos olhar pra trás - com toda aquela segurança que me juraram que o colo farto lhe tiraria - um pequena de menos de três anos me fazia companhia. Ao ver meu filho se afastar, me perguntou, com sobrancelhas franzidas e olhar curioso:
 - Tia, pra onde ele vai?
 - Mexer na plantinha e ver as coisas por ali - como ele começava a se afastar muito do meu campo de visão eu o chamei. A pequena ouviu e começou:
 - Não vou lá, deixa ele no perigo sozinho. 
Entenda-se por perigo se afastar da mãe. Eu permaneci calada, observando aquele serzinho tão falante.
 - Ah, eu vou lá. - Disse, já caminhando em direção ao meu pequeno.
O que aconteceu depois daí que me incomodou, cutucou e entristeceu. Com um ar determinado, mas com uma certa raiva, ela agarrou meu filho pelo braço. Assim, sem calma, sem delicadeza, sem doçura infantil. Simplesmente o agarrou e saiu arrastando, pra perto de mim, enquanto falava:
 - Venha cá! Pronto, agora senta aqui e fica aí! - colocando-o sentado ao meu lado.
Meu filho é grande, quase da mesma altura que ela, e bem fortinho, mas diante do choque que a situação lhe causou, ele se deixou arrastar, com um olhar confuso, tentando entender o que aquela pequena criança estava fazendo. 
Fiquei ali, parada, boquiaberta. Aquela criança trouxe meu filho da única forma que ela achava possível. Ela lidou com ele como o seu cuidador, talvez a mãe, lidaria com ela em situação semelhante. Não pude deixar de me perguntar o que estamos fazendo com nossas crianças. E que adultos deixaremos para o mundo. Poderia falar de muitas coisas que a situação me trouxe, mas não gosto de alongar muito.
Me chamou atenção o nível de condicionamento comportamental a que esta criança é submetida. Explorar o mundo, ter curiosidade, andar, cheirar e viver é perigoso. É preciso ficar perto do adulto, andar de acordo com seu passos e conhecer o mundo apenas pelos seus olhos cansados. Se tiramos da criança a sede de viver, o que fica? Sou a mãe maluca que deixa o filho andar descalço, subir escada e catar pedrinhas e plantinhas no jardim. E que admira o sorriso de satisfação que cada coisinha dessas estampa no rostinho suado do pequeno. Sim, o mundo não anda lá muito hospitaleiro. Mas não preciso transferir ao meu filho as agruras que a idade adulta revela. Deixo que ele tenha apenas as preocupações de criança. Aos poucos as noções de cuidado consigo e com o outro são introduzidas, mas sem ofuscar o brilho das descobertas que a curiosidade infantil traz.
Também não pude deixar de notar a ausência total de empatia. Aquela menininha que não é enxergada como ser humano pelos cuidadores, não conseguiu enxergar meu filho. Daquela reprodução violenta de comportamento, enxerguei o quanto ela é violentada diariamente. O quanto seus sentimentos são ignorados. O quanto ela é tratada como propriedade de alguém. Articulada e conversadeira, ela não soube encontrar em todo seu vocabulário um única palavra gentil para chamar meu filho a segui-la. Não soube porque não a ensinaram. Ilude-se quem acha que ensina o filho a ser educado, amável e companheiro ensinando-lhe a falar obrigada e por favor. Não, eles aprendem com nossas atitudes. Eles aprendem a tratar o outro como são tratados. E na primeira oportunidade seguirão com o ciclo. O violentado violenta. 
Ouço sempre que a juventude bitolada, egoísta e desrespeitosa que vemos hoje em dia é fruto de muito mimo dos pais. Que é uma geração que não apanhou. Vendo a cena que vi hoje só constato que nossos jovens alienados são fruto de uma geração negligenciada. Uma geração que não foi olhada nos olhos. Um geração que não foi ouvida. Que não mereceu um explicação, por menor que fosse. Que não aprendeu a ter empatia, porque esta palavra nunca fez parte de seu cotidiano. Um geração ignorada, invisível. Respeito a gente ensina respeitando, simples assim. Não há palmada, não há agressão, não há castigo que ensine mais que o exemplo. Criança vê, criança faz. Atitudes falam bem mais que o que sai da nossa boca. Observe o comportamento do seu filho quando ele se sentir em superioridade física. Posso te dizer com toda certeza que será mais revelador que olhar-se no espelho.

sábado, 18 de janeiro de 2014

E chega um novo amor

Passei uns dias sumida. Tudo bem, não sou uma blogueira muito assídua, mas dessa vez o hiato foi longo. Longo e absolutamente necessário. A vida mais uma vez me mostrou que não estou no comando de absolutamente nada. Mais uma vez sacudiu todas as certezas, mudou os planos e tirou tudo do lugar. Eis que me encontro mais uma vez grávida. Assim, sem planejar - pelo menos não conscientemente - sem sonhar, sem querer. Um novo fruto se instalou no meu ventre, com a força e a certeza de quem quer nascer de mim. Sim, mais uma vez fui escolhida. Sem qualquer convite, sem aviso, cresce mais uma vez um novo ser. 
Como toda notícia sem aviso, esta me tirou o chão. Eu, mãe apaixonada, fêmea saudosa dos tempos de barrigão, não consegui enxergar qualquer alegria. Chorei. Choro de luto, de morte. Porque vida também traz morte. E me dei um tempo pra chorar. Chorei a morte dos planos, dos novos estudos, da retomada próxima a vida profissional. Chorei a morte da mãe de um. Chorei a morte do cronograma tão planejado por esta mãe. E chorei e chorei. Sem dúvidas, cada lágrima derramada foi essencial para que o sorriso voltasse a florir em meu rosto. Porque a lágrima lava a gente de dentro pra fora. E eu precisava desse banho interno. Olhei inúmeras vezes para Miguel, com apenas 15 meses - hoje com 17 - e pedi perdão. Perdão pelas mudanças, pela minha dor, pela minha futura falta de tempo. Perdão por ter um outro bebê enquanto ele ainda é um bebê. Perdão porque deixaria de ser apenas mãe dele.
Por diversas vezes ouvi, das pouquíssimas pessoas que sabem desta gravidez, que não tinha motivo pra chorar, que filho é benção, que filho é alegria. Sim, filho é isso tudo mesmo. Mas também é mudança, é responsabilidade, é dedicação, é entrega. E agora, finalmente com a alma confortavelmente entregue a um, terei que dividí-la para dois. Não é fácil, não será fácil. 
Com a certeza que não será fácil em baixo do braço, trilhei um caminho de aceitação, de choro, de sonho e, sobretudo de amor. E aqui estou. 12 semanas de gestação. Não sei quantas faltam, mas não há pressa. Hoje posso dizer, de coração aberto, que aceito mais um vez esse privilegio. Porque gerar outra vida é um presente. Ainda não posso me considerar feliz. Mas estou em paz. Que venha esta nova luz para abrilhantar ainda mais os meus dias. Que venha cheio(a) de graça. Que venha certo(a) de que será bem recebido(a). 
Ensino ao meu filho, diariamente, que amor não tem limite. Quanto mais a gente dá, mais recebe. É uma fonte inesgotável, é força que se multiplica, que trasborda. Pois então a mãe de um transbordará de amor para os dois. Cá estou, mais uma vez no começo do caminho. Voltarei ao RN molinho, com cheirinho de leite materno. E verei novamente os primeiros passos, as primeiras palavras, as primeiras descobertas e os primeiros medos. As madrugadas novamente terão choros e fraldas de cocô. E mais vezes sentirei vontade de não ser mãe de nenhum. Mas agora terei dois sorrisos lindos, um bem banguelinho, para me mostrar que o sol brilha. E terei beijos nas duas bochechas, ao mesmo tempo. E o colo ficará cheio. E a cama ficará sempre quente. E escutarei bebenês por muito mais tempo que o previsto. E saberei que sou ainda mais amada que sou hoje. Mais vida em mim. Mais vida nada casa. Mais vida na vida. Que seja bem-vindo(a).