quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um adolescente de quase dois anos.

Certa feita li que o terrible two era a adolescência da infância. Para quem nunca ouviu falar nesta expressão, ela traduz algo que acontece por volta dos dois anos - as vezes antes, as vezes depois - , em decorrência do desenvolvimento emocional da criança. Sim, a deliciosa fase de enormes descobertas traz consigo efeitos colaterais. Tenho lido bastante a respeito, mas, como em diversas leituras, tenho aprendido racionalmente, mas não sentido, assim, na pele. Hoje entendi a comparação com a adolescência, e achei a descrição perfeita. 
Lembro bem de alguns sentimentos da minha adolescência. A vontade de sair e viver como um adulto vinha acompanhada da impossibilidade de me sustentar, emocional e financeiramente. Já não era uma criança, mas também não era um adulto. Estava ali, naquela zona cinza e indefinida, inadequada tanto em um quanto em outro meio. Pois bem, meu menino de quase 21 meses já não se sente um bebê. Quer vestir a roupa sozinho, calçar os próprios sapatos e andar solto por aí. Descobriu que o mundo é grande e que ele quer mais. Mas esse mundão enorme não atende as suas necessidades, não abarca as expectativas de um serzinho de menos de um metro. Inevitável a crise existencial.
Os últimos dias tem sido fofos e muito, muito difíceis. Tudo assim, junto e misturado. O guri partiu de um vocabulário de no máximo 20 palavras para falar com perfeição palavras com mais de três sílabas. Resolveu começar a fazer cocô no peniquinho. Tem interagido de uma maneira impressionante - pelo menos para mim, mãe babona assumida. Mas ao tempo que estas deliciosas mudanças vieram, veio também um desejo irrefreável de autonomia e independência. Para tudo responde um NÃAAAAO, sonoro e explicadinho, para deixar bem claro que ele tem vontade sim, e que quer que esta vontade seja respeitada. E respeitar esta vontade não é fácil não! Confesso que o terrible two tem me forçado a ir além de mim. A estudar e me superar. A contar até 350, a sair de perto, a respirar muito, muito fundo. Passo o dia negociando com o que é possível, conversando, oferecendo opções e, entoando um mantra quando a vontade dele é algo impossível de ceder. 
Depois de uma manhã linda e tranquila, cheia de brincadeiras e calmaria, a tarde veio tempestuosa. A criança acordou do cochilo absolutamente diferente e, depois de enlouquecermos, ambos, trancados em um apartamento, decidi ir no mercado perto de casa, aproveitaríamos a caminhada para passear e abstrair. Chegamos ao mercado, comprei o que precisava , com o pequeno sentado no carrinho, feliz da vida, apontando as coisas e falando tudo que reconhecia. Na saída ele me pediu uma das sacolas, e, antes que eu pudesse deixá-la com o peso adequado já estava ele, com o saquinho na mão. Não era pesada, cerca de 600 gramas, mas, como a caminhada seria de mais ou menos dez minutos, resolvi avisar:
- Filho, se você sentir que está pesado, devolve a sacola que a mamãe leva, tá?
- tá.
Depois de pouco mais de 2 minutos, a criança arremessa o saco longe, visivelmente irritado. Peguei a sacolinha e perguntei se ele ainda queria levar. Com a resposta afirmativa, recoloquei a sacola em suas mãozinhas ansiosas e seguimos. Mais dois minutos e novamente a sacola é arremessada. Desta vez ele grita, chora, e senta no chão. 
E lá vou eu, muito a contragosto, confesso, com um barrigão de seis meses de gestação, duas sacolas de mercado na mão, agachar, no meio da calçada, para conversar com a cria. Foi aí que percebi que eu não tinha nada com aquela história, que aquela explosão emocional não era comigo. Meu filho chorava muito, um choro irritado e sofrido. Os olhinhos transpareciam uma enorme frustração. E tudo ficou muito claro. Ele só queria ser capaz de me ajudar, de levar a sacolinha, como todo mundo faz. Ele não queria muito.Só queria um pouco mais. Senti meu coração apertar, um nozinho na garganta. Na hora minha impaciência foi embora. Consegui ir além dos meus preconceitos e vi ali uma criatura muito decepcionada, se sentindo incapaz. O que eu podia fazer? Gritar? brigar? reprimir?  Eu jamais trataria mal um amigo que carregasse aquele olhar. 
- Filho, você quer carregar a sacolinha né? Eu sei! Tá pesada demais! Vamos fazer o seguinte, mamãe vai tirar algo de dentro e te devolve num peso melhor tá bom?
- Nãaaaaaaaaao!
- Miguel, eu sei que você está frustrado, que queria muito levar a sacola como tá, mas tá pesada filho. Você logo será capaz de carregar uma grandona como a da mamãe. Mas agora sua sacola tem que ser menor. Eu sei que você tá triste. Eu entendo. Mas vamos ver se você consegue levar agora, assim?
Dei um beijo na testa, diminui o peso da sacola e entreguei a ele. Entre soluços pegou na minha mão, enxugou as lágrimas e saímos. O semblante mudou e o choro deu lugar a um sorriso, deixando clara a satisfação do Eu consigo! 
Voltei pra casa pensando em como sou injusta, por diversas vezes. Como ignoro que o mundo não foi feito para ele. Nada é da sua altura, nada é do seu jeito, nada é adequado. Entendi um pouco do nervosismo e das explosões emocionais. Reconheci o meu papel. Não tenho que julgar, limitar, podar. O mundo já tem bastante limites. Meu papel é ajudá-lo a lidar com os limites que a vida lhe impõe. Ajudar a lidar com  a enorme dor que a frustração traz. Ajudá-lo a reconhecer suas próprias dores. Ajudar a entender o tempo e o momento. Agora, nessa adolescência infantil, ele precisa muito mais de compreensão e paciência que de acusações e repreensões. Não tem sido fácil, não será fácil. Mas ao encarar aquele olhar eu pude ver que pra ele tem sido muito mais difícil que pra mim. É em sua cabecinha de ser que chegou a pouco no mundo que a vida tem ganhado e perdido sentido. É ele quem tem experimentado sentimentos tão loucos e tão profundamente desconhecidos que o fazem entrar em curto circuito. 
Sem dúvidas, os terríveis e maravilhosos dois anos serão uma fase de enorme amadurecimento, de cada um de nós, como seres humanos e de todos nós, como família. Lá vamos nós para mais esta jornada.



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